18 de maio de 2008

Escrita terapêutica

Rosa tem 53 anos, é divorciada, tem 3 filhas e falta apenas 1 ano para se aposentar. Rosa é uma minhas clientes desde setembro do ano passado. No primeiro contato, é comum perguntarmos o que levou a pessoa a procurar a terapia. Se a gente percebe que há uma dificuldade por parte da cliente para trazer a demanda de forma clara, vamos passo-a-passo, utilizando determinadas técnicas para compreensão da história de vida daquela pessoa.


Na sessão seguinte, decidi realizar a construção do genograma. Vamos lá: nome do pai e da mãe, idade deles, morreram ou não, causa da morte; irmãos e irmãs de Rosa, idade e como se dá o relacionamento com cada um/a deles/as; nome do pai das filhas de Rosa; idade quando se conheceram e quando se separaram; causa da separação; nome das filhas de Rosa, idade...

"- Juliana, tá faltando incluir o meu filho".

"- Filho?" – respondi assustada porque nenhum filho havia sido citado no primeiro contato.

"- É, meu filho que faleceu com 5 anos...".

Tocar no assunto "- E como foi a perda do seu filho?" nunca acontecia sem ser ao lado da caixinha de lenço de papel... Esse assunto tocava Rosa de tal forma que a deixava impossibilitada de se abrir. Impotente e impossibilitada ficava eu, jovem estagiária, que não sabia como trazer um assunto de extrema relevância para que ela compreendesse como isso impacta na relação dela com as filhas hoje e, também, para a construção do vínculo terapêutico. Mas, a terapia, como toda relação, envolve respeitar o tempo, o espaço do outro e ir trabalhando cada assunto seguindo o ritmo do cliente... é como uma dança também, temos que aprender a se deixar levar...

Nesse meio tempo, trabalhamos os demais papéis de Rosa: mulher, professora, filha, irmã, amiga, divorciada... e ainda assim não senti espaço para trabalharmos aquele temido papel: o de mãe que sofreu uma perda.

Tive que recorrer à minha supervisora de estágio e ela prontamente me disse: "- Peça a ela pra escrever".

Eu não sabia nada sobre escrita terapêutica, então, fui atrás! E descobri que um professor da Universidade La Sapienza, Luigi Solano, autor do livro Scrivere per pensare (ainda não traduzido para o português) acredita que a escrita terapêutica ajuda a pessoas a descrever detalhes de experiências negativas, explicitar sentimentos, colocar os fatos em ordem cronológica e estabelecer nexos. Escrever sobre experiências traumáticas pode ajudar pessoas a refletir sobre si e superar a dor da perda. A escrita e a fala não se contrapõem, mas a fala possibilita o espaço para a associação livre (fundamental para o tratamento pois estimula que o cliente traga questões inconscientes), já na escrita, o foco é mais definido. É como se, ao serem colocados no papel, desejos, necessidades e emoções se tornam mais claros.

A Rosa?! Ah, depois que ela me trouxe duas páginas repletas de rabiscos, círculos manchados de tinta e muita dor, eu tenho observado o quão rico é ver as reações dela ao ouvir suas palavras por meio da minha voz. E assim, pouco a pouco, vamos mais à fundo nesse processo difícil, mas necessário, de enfrentamento da dor.

A terapia – seja ela verbal, teatral ou escrita – não é apenas para aqueles que apresentam uma demanda grave. É uma forma de auto-conhecimento.

E é por isso que eu estou aqui: para, ao escrever, me auto-conhecer.

Obs1.: Alguns dados foram alterados para preservar a identidade dela.

Foto: eu escrevendo - nesse caso, nada interessante, apenas conferindo as rifas dos formandos.

7 de maio de 2008

Isabella: nosso luto necessário

O caso da menina Isabella, que morreu de forma brutal e misteriosa aos 5 anos de idade na cidade de São Paulo, tem sido acompanhado pelos brasileiros há alguns dias. Você quer ver as fotos? ou prefere os vídeos? o velório? as cartas? a missa de sétimo dia ou os depoimentos dos colegas? Não se preocupe: está tudo no ar.

Pois é, o que vem sendo discutido agora é: houve exagero da mídia ao relatar o caso? Ao meu ver, sim. A mídia não quer apenas informar, ela quer nos chocar, tocar - a ponto de nos fazer sofrer. Eu fiquei me perguntando, por exemplo, qual foi o objetivo de entrevistar os ex-coleguinhas da menina. Será que aquelas crianças de 5 anos têm a capacidade de compreender a perda da colega? E como será que eles se sentirão ao tomar consciência do que falaram "para todo o Brasil"?

Ao mesmo tempo, esse exagero levantou questões maiores, tais como o reconhecimento de que vivemos, sim, em uma sociedade do espetáculo. E o que vamos fazer com isso?

Uma das minhas supervisoras de estágio na clínica, Maria da Penha Nery (psicóloga, psicodramatista, psicoterapeuta e professora) escreveu um texto sobre isso. Penha, obrigada por suas belas palavras. Você é uma daquelas professoras que eu faço questão de chamar de educadora.

Isabella: nosso luto necessário.

(Texto de Maria da Penha Nery)

"Perdão Isabella, mas você foi escolhida. Escolhida para chorarmos por você, uma pessoinha que não conhecíamos, mas que nos foi apresentada no estrondo de uma queda. E aí, a admiramos. Encantamo-nos com seu jeito, seu sorriso, sua meninice. Passamos a amar a criança desamparada, rejeitada e que se tornou um bode expiatório, a tal ponto de ser vítima de uma violência irreversível.

Porém, Isabella, você foi escolhida para chorarmos outras coisas... Então, você também se torna o bode expiatório de todos nós, cidadãos de um país em desenvolvimento, também criança, cheio de ingenuidades, também crescido, mas menino-homem violento. Sim, choramos a incrível violência doméstica existente no Brasil, contra crianças e mulheres... Choramos o elevado índice de desemprego, os empregos subalternos desvalorizados, os serviços refeitos, os produtos violados... Sofremos com os indivíduos que passam fome, nas habitações miseráveis das favelas, sem infra-estrutura... Enlutamos dia-a-dia com o trânsito caótico e mórbido... Com a poluição, com a solidão da vida moderna.Estamos desesperados com a ganância, a arrogância, o lucro exorbitante dos 10% mais ricos do país e com a passividade, exploração e humilhação dos pobres e miseráveis, maioria da população. Ficamos estarrecidos diante da falta de líderes, da falta da luta política por um país efetivamente mais justo. E nos paralisamos na apatia e na hipocrisia da classe média que se deita em berço esplêndido.

Isabella, por você, vivemos o luto das florestas desmatadas, das madeiras enterradas, da caça aos animais em extinção... Vivemos o luto do trabalho escravo, da morte no campo por exaustão... dos índios tratados como animais... dos negros, ainda excluídos da sociedade. Choramos pelo nível educacional do país, pela qualidade baixíssima de ensino, pela quantidade exorbitante de evasão escolar... Nos petrificamos diante da corrupção, diante dos políticos hipócritas e egoístas... Sofremos com os assassinatos cruéis de gays, com as adolescentes que se entregam aos estrangeiros, porque não conseguem ver outras saídas diante da oferta em dólar, em euro, para a tão sensual e "fácil" imagem midiática da mulata brasileira.

Não conseguimos simular descaso diante de epidemias que já deveriam ter ido embora... E choramos as filas dos hospitais, as enfermarias inóspitas e a falta de tratamento para o cidadão... Nos perdemos diante dos salários injustos de médicos e professores.

Isabella, perdoe-nos, mas seguimos notícias suas, passo a passo. Elas se tornaram uma novela e quisemos ver todos os capítulos. Precisávamos nos certificar do que realmente acontecera em sua tragédia. Quem sabe a partir daí, nós também iríamos olhar a tragédia de tantos "aviões" de sua idade nas belas praias do país... E lamentar ter que dirigir com os vidros dos carros fechados, para que um pedinte de sua faixa etária não nos invada, com seu olhar tristonho ou para não sermos vítimas do ódio de um garoto que se endureceu de tanto viver abandonado nas ruas.

Esse pedido de perdão, Isabella, é porque não choramos só por você, pois talvez seria suficiente chorar por você na primeira noite da notícia de seu bárbaro assassinato. Ou nem chorarmos, por estarmos anestesiados pela banalidade da violência no país, pelos constantes assassinatos, roubos, extorsões, ilegalidades e abusos de poder presentes em nosso cotidiano, na ideologia de nossa mídia e em tudo que ela torna espetáculo acrítico.

Isabella, nós nos deprimimos com tanta coisa! Você não viverá muitas delas, não só a depressão em relação às questões sociais e econômicas de nosso país, mas também em relação às nossas mazelas pessoais! Tantas as sombras dentro de nós! Não sabemos o que somos capazes de fazer, com tanta frustração e agressividade contidas. Não temos consciência do quanto precisamos de justiça, de punir e de sermos punidos, diante dos males que cometemos. Não percebemos o quanto temos preconceitos, o quanto não aceitamos conviver com as diferenças. O quanto temos invejas e ciúmes e não conseguimos buscar saídas criativas em relação a esta dor... E, assim, nos desumanizamos para sobreviver em nossa vida medíocre...

Isabella, por você, choramos por nós mesmos. Choramos o quanto nos tratamos mal, levando a vida como se não houvesse amanhã. Choramos o quanto ignoramos quem está do nosso lado, no nosso lar, no nosso trabalho, no nosso prédio, no nosso bairro, quando deixamos de lutar pelo bem estar comum e olhamos apenas o nosso umbigo.

Pois é... agora descanse em paz, Isabella. Você fez muito por este mundo. Ah! Se você soubesse! Cumpriu a missão de nos dizer que vivemos, mas que nosso mundo está em queda, e que antes do estrondo, precisamos colocar-lhe uma rede de proteção chamada amor, para que possamos resgatar nossa dignidade e alegria de viver."

2 de maio de 2008

What touches you? Le travail humain.


what touches me. was mich berührt. ما يمس لي. 是什麼觸動我. lo que me toca. ce qui me touche. ό, τι αγγίζει εμένα. ciò che mi tocca. どのようなタッチメイン. o que me toca. что касается меня.

em inglês, em alemão, em árabe, em chinês, em espanhol, em francês, em grego, em italiano, em japonês, em português, em russo ou em qualquer outra língua, o verbo to touch, anfassen, للاتصا, 觸摸, tocar, toucher, αγγίζετε, toccare, に触れる, tocar, прикасаться apresenta uma série de acepções diferenciadas dentro da mesma língua e entre elas.

como mãe é mãe, vou exemplificar por meio da minha língua-mãe: a última flor do Lácio.

as lojas avisam: não é permitido tocar em qualquer mercadoria. há quem diga que é preciso ver pra crer e tocar pra sentir. e o telefone da casa da minha tia? toca sem parar! e a orquestra, quando toca, não te toca? tem gente que, quando fica chateado, não toca mais no assunto. quem trabalha na roça toca os bois, com chicote ou espora. aquele gesto do rapaz tocou a moça no fundo do coração. no brasil, quem quer levar algo adiante diz: vamos tocar aquele projeto?

querida família (porque os meus amigos são a família que eu escolhi),
é isso que eu vim fazer aqui: escrever o que me toca!
quero escrever sobre momentos, experiências, pensamentos, pessoas que me tocam ou me tocaram utilizando todas as conotações que esta palavra pode assumir.

se há algo que me toca, me interessa, me chama a atenção é o mundo do trabalho. por isso, inicio este blog no dia de hoje - dia de maio de 2008 - dia mundial do trabalho.

o dia mundial do trabalho foi criado em 1889, por um congresso socialista realizado em paris. (é por isso, e pelo meu interesse pela história e cultura francesas, que o título deste blog aparece em francês). a data foi escolhida em homenagem à greve geral, que aconteceu em 1º de maio de 1886, em chicago, o principal centro industrial dos estados unidos naquela época.

milhares de trabalhadores foram às ruas para protestar contra as condições de trabalho desumanas a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de trabalho de 13 para 8 horas diárias. naquele dia, manifestações, passeatas, discursos e piquetes movimentaram a cidade. mas a repressão ao movimento foi dura: houve prisões, feridos e até mortos nos confrontos entre os operários e a polícia.

em memória dos mártires de chicago, das reivindicações operárias e por tudo que este dia significou na luta dos trabalhadores pelos seus direitos, o 1º de maio trata-se de um dia de luto e de luta até os dias atuais. e os jornais de hoje corroboram essa informação.

em Interlagos, na Zona Sul de São Paulo; em Zacarta; em Berlim e em Hamburgo; em Havana; em Moscou; em Instambul; em Lahore e em Tessalônica, várias foram as manifestações.

e qual delas te tocou mais?

fonte auxiliar: ibge; folha de são paulo e dicionário houaiss