18 de outubro de 2009

Passando a limpo.

No mesmo dia ou no dia seguinte que eu cheguei em Barcelona perguntei a Sara, espanhola que mora no apto há mais tempo: "- Então, como vocês fazem com a limpeza?" Afinal, é sempre bom saber as regras da casa e era eu quem tinha acabado de chegar. Ela olhou pra mim com uma cara de "tá achando que eu sou sua mãe, minha filha?" e respondeu:
- A gente não tem regras. Cada um limpa o que quer, quando quer de acordo com seu bom senso.

Fiquei com aquela cara de "huuuuum... e se o meu bom senso não for igual ao seu?" e respondi: "ah tá... melhor assim!" e saiu um hehe meio sem graça. A resposta da galega me deixou confusa sobre como agir dali pra frente. Especialmente porque eu não me sentia em casa ainda. Entrava no banheiro e pensava "mas não somos 4? Pq tem 6 escovas de dentes no pote se eu ainda não coloquei a minha?" De quem são esses cremes, essas toalhas e essas coias espalhadas.... ahhhh eu moro com um homem! Tinha esquecido... há de acostumar-se.

Levou algumas semanas até eu ter coragem de limpar o banheiro. Pra mim, não estava limpo. Não sei se é a influência do amor pela fera felina que convive conosco, mas eu achava que a limpeza deles era meio de gato, sabe? Não tiram as coisas para passar o pano, que estranho...
Até que um dia, eu decidi intervir. Escolhi uma bela tarde catalana de dijous em que não houvesse ninguém em casa para me sentir mais à vontade. Secos e Molhados nas alturas e lá fui eu cantarelando começar o trabalho... Primeiro, tira o tapete, balança, revista, lixo, a estante dos cremes e põe tudo no corredor. Depois tira tudo de cima da pia e passa pro quarto ao lado: o sabonete líquido, as pastas de dente, o pote com as escovas de aaaaaaarghhhhh! É, foi mais ou menos essa a minha reação quando eu, sei querer (uma variação do sem querer, quando estás consciente do que o seu inconsciente queria fazer), olhei o que havia ali, no fundo do pote vermelho das escovas de dente: um liquído gosmento e espesso amarelo-citrino. (Caro leitor, recomenda-se não comer até o fim das próximas linhas). E foi entre o nojo receoso de olhar y las fuertes ganas de limpiar que eu usei três produtos, um pano e alguns pedaços de papel para deixar o pote todo vermelho!

E com e ao som de Sangue Latino, limpei a pia, o vaso sanitário por dentro e por fora e o espelho com um produto especial e o jornal. O nosso espelho tem uma moldura grossa ao redor e não sei porquê (lá vem o bendito comportamento inexplicável, lembram?) decidi passar o pano na parte de cima da moldura. Naquela parte que ninguém vê, sabe? Pra quê, menina? Me diz, por quê você tem esses comportamentos? Por quê não estava tomando um sorvete na Plaza de Gràcia naquele momento? Negro-azulado e preto-amarronzado, joguei o pano diretamente na basura, como dizem os espanhóis. Depois veio o box! Esfrega, esfrega, esfrega e canta bem alto pra fazer mais força! Por fim, a linda estilosa e delgada vassoura!!! É que eu sou a única que dou valor a pobrecita aqui em casa. Os espanhóis preferem usar o aspirador para limpar o chão. No meu ap em Bsb, aspirador sempre serviu pra limpar tapete e não cerâmica. Que me chamem de mulher do arco da velha, eu ainda prefiro a elegante vassoura ao desengonçado e barulhento aspirador. Acho que é porque gosto de ver o resultado do meu esforço: aquela cabelada toda misturada com a poeira, a unha de um, os pêlos do outro e os do Muxi pra completar... tudo pra pá já! Bem, daí, venho na contramão com um esfregão e um produto beeem cheiroso para dar o toque final. E tem que ser esfregão mesmo porque os banheiros da Europa, até onde eu me lembro, não tem ralo. Ou seja, nada do prazer de deleitar água com sabão no chão. E enquanto ele seca, escolho a roupa que vou vestir. Devolvo todas os objetos do corredor para o novo cômodo da casa (é que, modéstia à parte, parece novo mesmo), pego minha toalha e vou pro banho. Por supuesto hombre!!! Ahora, quien necesita de una limpieza soy yo! ;)

É claro que eu fiquei pensando que eles iam me achar uma obsessiva-compulsiva por limpeza, mas desde aquele dia eles admiram o resultado. Fiquei tão contente que eles tenham observado a diferença que agora faço questão de entrar em ação quando eles aqui estão! E continuo colocando uma musiquinha pra eles verem que limpar um banheiro pode até ser divertido. Mas o que eu ainda tenho observado é a influência do gato na limpeza do casal...

O culpado...

O resultado! =)

6 de outubro de 2009

Sobre e para ela: a minha mãe

Eu lembro como se fosse ontem. Tinha por volta dos meus 15 anos e estudava inglês na Thomas, ali na L2 norte. A mamãe, naquela época, já coordenava o Projeto Com-Vivência, no Hospital Universitário de Brasília. O projeto oferece atendimento a portadores do vírus HIV/Aids e seus familiares e, por ser um projeto de extensão, capacita alunos para realizar os atendimentos com base na teoria e prática da Psicologia da Saúde. Neste dia, como eu estava com preguiça de voltar pra casa andando, caminhei da Thomas só até o HUB e fiquei esperando pra voltar com a momis. Sentada na sala de espera e folheando uma revista, entra uma mulher alta, morena, com notável sobrepeso, aos prantos. A minha mãe aparece e a mulher enorme a abraça. O choro entre soluços me causou tristeza e espanto, mas a cena também era engraçada porque a mulher tinha os ombros, braços e pernas tão grandes e largos que ao abraçar a minha pequenina momis de 1,58 metros de altura, a cobria por inteiro e eu não era mais capaz de vê-la. A psicóloga então se afasta, reaparece na cena e convida a mulher chorosa a entrar em outra sala.

Quando estávamos no estacionamento, finalmente pude perguntar:
- Momis, o que foi que aconteceu?
- Ah, filha, aquela é a irmã de um paciente nosso, que tem HIV. Ele desapareu. Ele desaparece de vez em quando.
- Nossa! E enquanto eu estava imaginando o quão aflita aquela mulher deveria estar, a momis continuou...
- Ele é travesti, trabalha como garoto de programa, usa drogas injetáveis e desaparece muitas vezes, mas a gente espera que ele volte, como das outras vezes...

Nessa época, eu ainda não tinha decidido fazer o curso de psicologia mas já admirava a psicóloga que me trouxe ao mundo. Ficava impressionada com a tranqüilidade, afeto e persistência que ela tinha para conversar com os pacientes, lidar com a morte de muitos deles e enfrentar situações como essas todas as semanas, durante anos. E assim, enquanto amadurecia, observava que trabalhar poderia envolver lutar em prol da qualidade de vida daqueles que, um dia, infelizmente, por diferentes motivos, receberam um pesadelo chamado vírus que impede muitos deles de continuar a sonhar.

Também me lembro de outra história. Lembro dela me contando como faz pra ensinar senhoras a medicar os netinhos que tem o vírus. Porque, muitas vezes, a mãe portadora passa pro bebê, mas não resiste por muito tempo. Então, são as vovós as responsáveis por gerenciar a quantidade de remédios que aqueles pequenos têm que tomar. Como fazer a criança entender que ela precisa ingerir todas aquelas pílulas num único dia para todo o sempre? Como não deixar os coleguinhas e seus respectivos pais saberem o motivo (para evitar o preconceito)? E se as vovós forem analfabetas, como simplesmente entregar a receita se elas não sabem o que aqueles símbolos juntos querem dizer? Não tem problema, a momis e os demais do grupo com-vivência têm paciência. Eles desenham o sol e a lua, relógios e objetos de diferentes cores. E sugerem que em contextos sociais, numa festinha, na escola, o ideal é combinar com os pequenos que é hora de tomar água, de ir ao banheiro, pra não chamar a atenção dos demais e não perder a hora certa do medicamento.

Enquanto eu me preocupava com o PAS, com qual curso marcar ao me inscrever pra prova e com as espinhas que brincavam de campo minado na minha cara, os relatos das vivências da minha mãe na sala 1 do corredor laranja do HUB me davam um banho de água fria para alertar que a vida é muito mais cruel e dura do que eu imaginava. A forma como a minha mãe comentava e criticava as suas histórias, as dos outros ou a dos sensacionalistas telejornais sempre tinham esse tom de me chamar pro mundo real, me incentivar a fazer um trabalho social, pensar nos outros, de não apenas saber dividir, como gostar de compartir, de poder sonhar, mas de não viver em um conto de fadas.

Também me lembro da energia da momis, que muitas vezes, durante a minha adolescência, superava a minha! Lembro dela saindo dia de quinta-feira pra dançar, na sexta ia pro bar, sábado pro Clube do choro, domingo pra Academia de tênis. Culta, antenada e independente, tinha dias que ela olhava pra mim, sentada na escrivaninha do meu quarto e dizia:

- Milha filha, mas o que que é isso??? Você tá estudando até agora? Dá pra parar de estudar um pouco, por favor?!

Foi com ela que eu aprendi na prática, desde cedo, a teoria de que o que somos obrigados a fazer não fazemos com gosto. Porque a motivação precisa ser intrínseca e não extrínseca ( quando depende de uma recompensa: dinheiro, permissão pra sair com os amiguinhos, etc). Nunca fui repreendida por uma nota baixa, nunca deixei de sair quando quis, nunca fui exageradamente admirada por notas altas. Creio que por isso aprendi a estudar pra mim e não pros meus pais, nem pra mais ninguém.

Filha mais velha de uma ninhada de dois casais, me lembro também que a Lili (como a momis era chamada pelos irmãos) não se cansava de incentivar a união da família. Desde que eu me dou por gente até o dia que a vovó Marília nos deixou, tinha encontro na casa da vovó aos domingos, no fim-da-tarde. E aíiii de mim se eu dissesse que não queria ir. Pelo menos não precisávamos de muita coisa: um monte de mixto quente com coca-cola, tios, tias, primos e primas e a vovó juntos era suficiente para começarmos a semana com bom humor. Brincávamos de gato mia, esconde-esconde e também gostávamos de deixar o Faustão no mudo, enquanto o nosso primo fera gigante falava por ele, criando histórias e deixando eu e as minhas primas com dor de barriga de tanto rir.

Ahhh, também me lembro, pelo menos duas vezes por ano a Lili estava lá, com o guia na mão pra organizar uma viagem em família. Caldas Novas, Pirinópolis, São Jorge e Goiás Velho eram as cidades que mais entravam no roteiro. E a galera da turma da vovó Marília ia toda reunida, ao som de Rollings Stones e Jorge Ben, tomar banho de canhoeira gelado, enfrentar as trilhas do cerrado e comer frango com quiabo! Ôoo delíiiiciaaa... é nessas horas que a saudade bate e a gente tem vontade de dizer: eu era feliz e não sabia!

Mas, apesar de todos esses incentivos com a família toda, no dia-a-dia, em casa, a família era eu e ela. O papai sempre sempre esteve presente e nos víamos todos os finais-de-semana, mas sempre morei com ela. E se antes eu não entendia algumas das suas decisões, hoje as levo comigo. No meu quarto, nunca entrou televisão. Não pela inutilidade da máquina em si (sobre a qual fui avisada), hoje eu entendo que a momis entendia que brigar pela escolha do canal é uma vivência em família. E enquanto ela via o noticiário, eu coloca no Chaves na hora do intervalo e sempre rolava uma briguinha. Se eu tivesse minha própria TV, teria visto mais Chaves, mas também teria ficado menos tempo com a minha mãe e teria conversado menos, por mais que entre as conversas estivesse a disputa pelo filme, pela novela, pela jornal ou programa do Jô.

A hora do almoço ela também fazia questão que a passássemos em família (e esse é um hábito dos brasileiros que eu adoro e que sinto falta)! Aconteça o que acontecer, almoçávamos juntas. Durante o segundo grau, foi super complicado porque chegava do sigma às 13:10, 13:15 e ela tinha estar no trabalho às 14h. Então, ficava pronta, já maquiada e com tudo arrumado apenas me esperando pra almoçar comigo, para perguntar como foi a manhã na escola, pra estar mais perto e não apenas pra conferir o quanto de verdura e legumes eu comi.

São por essas e outras lembranças que a minha mãe me ensinou que o sentimento de pertencer a uma família não depende do número de pessoas que a compõem, mas simplesmente das vivências que envolvem ceder, compartilhar e reunir. Mesmo que a reunião seja simplesmente um par de gente! =).

Momis, no dia em que você completa mais um ano de vida quero te agradecer por dar sentido à minha vida, por me ensinar o que é fazer parte de uma família e por me despertar a vontade de viver intensamente o sonho de gerar novas vidas e de construir mais uma família unida.

Deixo de presente uma foto nossa que eu adoro: você vestida de Mangueira pra não esquecer que você é Garota de Botafogo, muito mais forte e guerreira que a de Ipanema, mas que também enche o mundo de graça quando passa...

Feliz aniversário, momis! Te amo.