6 de outubro de 2009

Sobre e para ela: a minha mãe

Eu lembro como se fosse ontem. Tinha por volta dos meus 15 anos e estudava inglês na Thomas, ali na L2 norte. A mamãe, naquela época, já coordenava o Projeto Com-Vivência, no Hospital Universitário de Brasília. O projeto oferece atendimento a portadores do vírus HIV/Aids e seus familiares e, por ser um projeto de extensão, capacita alunos para realizar os atendimentos com base na teoria e prática da Psicologia da Saúde. Neste dia, como eu estava com preguiça de voltar pra casa andando, caminhei da Thomas só até o HUB e fiquei esperando pra voltar com a momis. Sentada na sala de espera e folheando uma revista, entra uma mulher alta, morena, com notável sobrepeso, aos prantos. A minha mãe aparece e a mulher enorme a abraça. O choro entre soluços me causou tristeza e espanto, mas a cena também era engraçada porque a mulher tinha os ombros, braços e pernas tão grandes e largos que ao abraçar a minha pequenina momis de 1,58 metros de altura, a cobria por inteiro e eu não era mais capaz de vê-la. A psicóloga então se afasta, reaparece na cena e convida a mulher chorosa a entrar em outra sala.

Quando estávamos no estacionamento, finalmente pude perguntar:
- Momis, o que foi que aconteceu?
- Ah, filha, aquela é a irmã de um paciente nosso, que tem HIV. Ele desapareu. Ele desaparece de vez em quando.
- Nossa! E enquanto eu estava imaginando o quão aflita aquela mulher deveria estar, a momis continuou...
- Ele é travesti, trabalha como garoto de programa, usa drogas injetáveis e desaparece muitas vezes, mas a gente espera que ele volte, como das outras vezes...

Nessa época, eu ainda não tinha decidido fazer o curso de psicologia mas já admirava a psicóloga que me trouxe ao mundo. Ficava impressionada com a tranqüilidade, afeto e persistência que ela tinha para conversar com os pacientes, lidar com a morte de muitos deles e enfrentar situações como essas todas as semanas, durante anos. E assim, enquanto amadurecia, observava que trabalhar poderia envolver lutar em prol da qualidade de vida daqueles que, um dia, infelizmente, por diferentes motivos, receberam um pesadelo chamado vírus que impede muitos deles de continuar a sonhar.

Também me lembro de outra história. Lembro dela me contando como faz pra ensinar senhoras a medicar os netinhos que tem o vírus. Porque, muitas vezes, a mãe portadora passa pro bebê, mas não resiste por muito tempo. Então, são as vovós as responsáveis por gerenciar a quantidade de remédios que aqueles pequenos têm que tomar. Como fazer a criança entender que ela precisa ingerir todas aquelas pílulas num único dia para todo o sempre? Como não deixar os coleguinhas e seus respectivos pais saberem o motivo (para evitar o preconceito)? E se as vovós forem analfabetas, como simplesmente entregar a receita se elas não sabem o que aqueles símbolos juntos querem dizer? Não tem problema, a momis e os demais do grupo com-vivência têm paciência. Eles desenham o sol e a lua, relógios e objetos de diferentes cores. E sugerem que em contextos sociais, numa festinha, na escola, o ideal é combinar com os pequenos que é hora de tomar água, de ir ao banheiro, pra não chamar a atenção dos demais e não perder a hora certa do medicamento.

Enquanto eu me preocupava com o PAS, com qual curso marcar ao me inscrever pra prova e com as espinhas que brincavam de campo minado na minha cara, os relatos das vivências da minha mãe na sala 1 do corredor laranja do HUB me davam um banho de água fria para alertar que a vida é muito mais cruel e dura do que eu imaginava. A forma como a minha mãe comentava e criticava as suas histórias, as dos outros ou a dos sensacionalistas telejornais sempre tinham esse tom de me chamar pro mundo real, me incentivar a fazer um trabalho social, pensar nos outros, de não apenas saber dividir, como gostar de compartir, de poder sonhar, mas de não viver em um conto de fadas.

Também me lembro da energia da momis, que muitas vezes, durante a minha adolescência, superava a minha! Lembro dela saindo dia de quinta-feira pra dançar, na sexta ia pro bar, sábado pro Clube do choro, domingo pra Academia de tênis. Culta, antenada e independente, tinha dias que ela olhava pra mim, sentada na escrivaninha do meu quarto e dizia:

- Milha filha, mas o que que é isso??? Você tá estudando até agora? Dá pra parar de estudar um pouco, por favor?!

Foi com ela que eu aprendi na prática, desde cedo, a teoria de que o que somos obrigados a fazer não fazemos com gosto. Porque a motivação precisa ser intrínseca e não extrínseca ( quando depende de uma recompensa: dinheiro, permissão pra sair com os amiguinhos, etc). Nunca fui repreendida por uma nota baixa, nunca deixei de sair quando quis, nunca fui exageradamente admirada por notas altas. Creio que por isso aprendi a estudar pra mim e não pros meus pais, nem pra mais ninguém.

Filha mais velha de uma ninhada de dois casais, me lembro também que a Lili (como a momis era chamada pelos irmãos) não se cansava de incentivar a união da família. Desde que eu me dou por gente até o dia que a vovó Marília nos deixou, tinha encontro na casa da vovó aos domingos, no fim-da-tarde. E aíiii de mim se eu dissesse que não queria ir. Pelo menos não precisávamos de muita coisa: um monte de mixto quente com coca-cola, tios, tias, primos e primas e a vovó juntos era suficiente para começarmos a semana com bom humor. Brincávamos de gato mia, esconde-esconde e também gostávamos de deixar o Faustão no mudo, enquanto o nosso primo fera gigante falava por ele, criando histórias e deixando eu e as minhas primas com dor de barriga de tanto rir.

Ahhh, também me lembro, pelo menos duas vezes por ano a Lili estava lá, com o guia na mão pra organizar uma viagem em família. Caldas Novas, Pirinópolis, São Jorge e Goiás Velho eram as cidades que mais entravam no roteiro. E a galera da turma da vovó Marília ia toda reunida, ao som de Rollings Stones e Jorge Ben, tomar banho de canhoeira gelado, enfrentar as trilhas do cerrado e comer frango com quiabo! Ôoo delíiiiciaaa... é nessas horas que a saudade bate e a gente tem vontade de dizer: eu era feliz e não sabia!

Mas, apesar de todos esses incentivos com a família toda, no dia-a-dia, em casa, a família era eu e ela. O papai sempre sempre esteve presente e nos víamos todos os finais-de-semana, mas sempre morei com ela. E se antes eu não entendia algumas das suas decisões, hoje as levo comigo. No meu quarto, nunca entrou televisão. Não pela inutilidade da máquina em si (sobre a qual fui avisada), hoje eu entendo que a momis entendia que brigar pela escolha do canal é uma vivência em família. E enquanto ela via o noticiário, eu coloca no Chaves na hora do intervalo e sempre rolava uma briguinha. Se eu tivesse minha própria TV, teria visto mais Chaves, mas também teria ficado menos tempo com a minha mãe e teria conversado menos, por mais que entre as conversas estivesse a disputa pelo filme, pela novela, pela jornal ou programa do Jô.

A hora do almoço ela também fazia questão que a passássemos em família (e esse é um hábito dos brasileiros que eu adoro e que sinto falta)! Aconteça o que acontecer, almoçávamos juntas. Durante o segundo grau, foi super complicado porque chegava do sigma às 13:10, 13:15 e ela tinha estar no trabalho às 14h. Então, ficava pronta, já maquiada e com tudo arrumado apenas me esperando pra almoçar comigo, para perguntar como foi a manhã na escola, pra estar mais perto e não apenas pra conferir o quanto de verdura e legumes eu comi.

São por essas e outras lembranças que a minha mãe me ensinou que o sentimento de pertencer a uma família não depende do número de pessoas que a compõem, mas simplesmente das vivências que envolvem ceder, compartilhar e reunir. Mesmo que a reunião seja simplesmente um par de gente! =).

Momis, no dia em que você completa mais um ano de vida quero te agradecer por dar sentido à minha vida, por me ensinar o que é fazer parte de uma família e por me despertar a vontade de viver intensamente o sonho de gerar novas vidas e de construir mais uma família unida.

Deixo de presente uma foto nossa que eu adoro: você vestida de Mangueira pra não esquecer que você é Garota de Botafogo, muito mais forte e guerreira que a de Ipanema, mas que também enche o mundo de graça quando passa...

Feliz aniversário, momis! Te amo.