10 de junho de 2010

Maria, João e Pessoa

Tive a oportunidade de conhecer Maria quando fui estagiária do Centro de Atendimento e Estudos Psicologicos da Universidade de Brasília (CAEP - UnB) no primeiros meses do ano de 2008. Eu era a terapeuta, ou melhor, a aprendiz (ou algo no meio, ou as duas coisas...) e ela era quem tinha o interesse em receber atendimento psicológico (algum psicólogx, por favor, como vocês chamam as pessoas que fazem terapia? porque paciente me lembra a relação médico-paciente - bleh!, cliente é capitalista demais, né?... e se vier chamar de doente, eu fico louca! nenhum de nós é completamente saudável ou completamente doente. se você acredita ser sano mentalmente, aproveite enquanto há tempo! eu já não acredito mais).

No meio de tanta confusão de quem éramos, as duas pessoas (assim fica melhor né?! ;) se encontravam todas as quartas-feiras de manhã. E durante 1 hora a Maria me contava como havia sido a sua semana passada. Os relatos de Maria envolviam sempre a sua relação com a filha, a relação que a filha tinha com o marido, o seu novo papel como avó, a despedida do trabalho, os medos da sua vida como aposentada e as enormes saudades da mãe e da irmã, que continuavam morando na sua cidade natal: João Pessoa.

Maria era uma mulher que transbordava energia. Se algumas pessoas demoravam para "aquecer", como os psicodramatistas dizem, Maria chegava "em ponto de bala" a cada encontro. Falava, falava, falava sem parar e a sua fala era entrecortada por gargalhas altas que não me faziam rir. Eu sentia que atrás daquelas risadas escandalosas havia uma dor que temia sair. Sua ansiedade era perceptível de muitas formas. Maria se sentava beeem na pontinha da cadeira. Eu estava pra ver o dia Maria iria cair dali! Ela parecia pronta pra agir, mas ainda não sabia como.

Nos fins-de-semana, Maria sempre cuidou da sua neta. Quando a filha queria sair com o marido, ou tinha algum problema pra resolver, ela ficava contente em poder cuidar da sua linda netinha. Só que quando Maria entrou na aposentadoria, a sua filha passou a pedir para Maria cuidar da neta com maior frequência. Era uma forma que a filha dela tinha de economizar e estar tranquila - "porque é difícil confiar nas babás de hoje em dia - né mãe"? Porém, apenas na terapia Maria tinha coragem de dizer que estava cansada. Ela optou por finalizar sua carreira para ter mais tempo para cuidar de si. Para permitir-se viver a vida que a outra vida nunca lhe permitiu viver. Só que por amar a filha e a neta imensuravelmente, Maria se sentia culpada em recusar a estar com a neta e negar ajudar à filha. Ao mesmo tempo, ela não entendia porque a família do pai não era mais presente, ela nunca entendeu porque a filha engravidou tão cedo, ela considerava sua filha imatura para ser mãe. Mas Maria também sentia que era o momento de voltar a reencontrar a sua mãe, que estava precisando de cuidados e de estar mais perto da irmã, que sofria de depressão. Os deveres e os desejos dos seus papéis brigavam dentro do coração de Maria. A cada sessão, pouco a pouco, aparecia a Maria assertiva, a Maria receosa, a Maria que pondera mas tem vontades e a Maria medrosa. Tentávamos encontrar naquele espaço qual o espaço Maria queria ocupar no mundo real.

Na ensolarada manhã seguinte de quarta-feira, achei estranho não ter visto Maria na sala-de-espera. "Ué, ela é sempre tão pontual..." Esperei 15 minutos, 30 minutos e guardei o protocolo dela. Não costumávamos esperar mais que isso. "Deve ter acontecido algum imprevisto, Maria deve ligar e se justificar". Três dias depois, Maria não tinha me ligado. "Talvez Maria apenas se esqueceu..." E na próxima quarta-feira eu tinha a certeza de que ela apareceria. Maria não apareceu nas próximas 2 sessões. Liguei inúmeras vezes no único número que Maria havia deixado e, em todas elas, deu desligado. Três faltas não justificáveis nesta Clínica-Escola desligam a pessoa do serviço, já que a lista de interessados é muito grande. Milhares de pensamentos rondaram e atordoaram esta pessoa que aqui vos escreve. "O que eu fiz a Maria? Onde foi que eu errei?" Nós sabemos que essas relações costumam ser assim: extremamente intensas mas prestes a terminar a qualquer momento. Mesmo assim, foi difícil lidar com essa partida. Em supervisão, comentei sobre este desligamento forçado com uma pessoa com quem o processo terapêutico vinha caminhando muito bem...

Na última semana de estágio, organizando meu relatório encontrei sem querer o e-mail de Maria. Não sabia se ela usava aquele e-mail ou não e nós nunca somos aconselhados a contactá-los desta forma. Apenas em último caso. Decidi escrever. E poucos dias depois, Maria me respondeu:

" -Juliana, eu estou em João Pessoa. Contei a milha filha que precisava rever a minha mãe, voltar a minha terra, sentir esse cheiro de mar e colocar os pés na areia. Ter a vida que eu queria, lembra? Abraços, Maria."


Ah, Maria... passaram-se dois anos e eu ainda me lembro. É neste exato instante em que me acomete uma série de dúvidas sobre o que quero fazer no meu futuro breve que as lembranças da nossa vivência e de muitas outras que tive a seguir se tornam mais presentes e fortalecem uma das poucas certezas que eu carrego comigo agora: onde quer que esteja, seja lá o que eu vá fazer, eu só me sinto realizada naqueles trabalhos que me permitem conviver direta e intensamente com Maria, João... Pessoas!

ps.: Por respeito à Maria, seu nome e história foram modificados.